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sábado, 30 de outubro de 2010

Fernando Sabino e as Viradas da Vida




Esta postagem é a extensão de um comentário que fiz no meu perfil no Orkut. Algumas idéias se ligaram em minha cabeça e o momento de liberdade e confiança que atravesso atualmente o tornaram (ao comentário) longo e resolvi transformá-lo num post, under construction, i.e, em construção ou, já que o comentário cita James Joyce, em homenagem a ele, poderei usar a expressão - comum na língua inglesa - que se usa para trabalhos ainda em andamento, incompletos, "work in progress", como Joyce dizia aos insistentes jornalistas literários que sempre lhe tentavam extrair o nome da próxima obra. A obra em questão era "Finnegan's Wake". Nem me arrisco a traduzir, pois, até onde sei, tanto pode significar "O Despertar de Finnegan" como "O Velório de Finnegan". Se bem que, como o livro descreve um sonho do qual o protagonista - se é que se pode usar esse termo para descrever personagens joyceanos - acaba por despertar, a primeira tradução seria a correta. Porém, com Joyce nunca se sabe... Deixo àqueles com maior domínio da linguagem do Grande Bardo - Come on! Shakespeare, guys... Fugiram das aulas de Literatura? - a incumbência de traduzir corretamente. A frase do meu perfil é do livro "O Encontro Marcado" de Fernando Sabino, grande escritor brasileiro, mestre da nossa linguagem, que tive o privilégio e o prazer de conhecer um dia em Curitiba e guiar até a Biblioteca Pública Estadual do Paraná, onde ele faria uma palestra sobre o ofício de escritor. Sabino, se ainda vivo, poderia nos dizer a tradução mais apropriada para o título do livro de Joyce, já que era fluente em diversas línguas, especialmente o Inglês e o Francês. Estava tomando cafezinho num quiosque da Rua das Flores no Centro de Curitiba e carregava debaixo do braço dois livros: "O Capital" de Karl Marx (o 1º Volume) e "Ulisses" de James Joyce, dois livros que exigem um certo esforço de leitura. De repente, um senhor que estava ao meu lado, no balcão, comentou, apontando de forma discreta para os volumosos tomos que descansavam sobre o tampo de mármore (penso que era de mármore, mas passados tantos anos não tenho certeza - estávamos em 1985, então) do balcão: "leitura pesada, principalmente quando lida simultaneamente, não?". Era Sabino, que estava igualmente exercendo esse imorredouro prazer brasileiro: tomando um "menorzinho", como se diz aqui na Bahia para o tradicional cafezinho na chicarazinha. Respondi que a paixão pela leitura era muito forte e sempre exerceu grande influência sobre mim, e que vinha me esforçando aplicadamente para superar as dificuldades estilísticas de Joyce e os longos e pesados parágrafos de Marx. Naturalmente comentei: "o senhor é o...". "Deixa esse negócio de senhor pra lá", respondeu Sabino. "Uma vez que você parece ser um leitor voraz, deve conhecer a Biblioteca Pública. Tenho de fazer uma palestra lá e vim andando do Hotel Mabu (na Praça Santos Andrade, onde fica o Teatro Guaíra, o maior da América do Sul, - Almir Borges) sabendo que fica por aqui por perto, pois adoro esta Rua das Flores. Toda cidade devia ter uma rua central como essa, toda calçada, com tantos bancos (bancos para se sentar - Almir Borges), árvores, quiosques que servem café e lanches, onde se senta para bater papo, com amigos ou desconhecidos, livre de todos os compromissos. No Rio, o que temos de mais parecido é o Calçadão de Ipanema, creio eu, porém não apresenta este sossego todo". "Mas" - continuou Sabino - "como faz algum tempo que não ando por estes lados, estou ligeiramente incerto. Acho que é subindo na outra rua...Você poderia me acompanhar até la? Se não for atrapalhar..." (Como estávamos entre a Monsenhor Celso e a Marechal Floriano, ele estava ligeiramente enganado. Teria de subir uma rua depois - Dr. Muricy - e na primeira esquina estaria na Biblioteca). Respondi que não haveria problema nenhum e já que ele faria uma palestra, iria assistir com grande prazer, admirador de sua arte que era, desde há muito. Acompanhei o escritor até a Biblioteca e assisti sua palestra no auditório, que acumula as funções de sala de projeção de filmes e de realização de peças teatrais. Já havia lido a maioria dos livros de Fernando Sabino, e a angústia existencial de "O Encontro Marcado", do qual tirei as palavras atuais do meu perfil no Orkut, não se esquece facilmente. Ao contrário, porém, da visão pessimista de muitos críticos - principalmente aqueles de formação marxista - de que há uma desesperança inarredável no livro e na juventude nele retratada - encontro em suas palavras uma inabalável crença na força que tem o ser humano para superar as adversidades. Existem lições que não se esquece nunca na vida e que, subitamente, se tornam relevantes nas viradas bruscas que ela nos proporciona. Eu andei um bom tempo sufocado, preso, desarticulado, marcando passo, sem "joie de vivre". Fui abruptamente surpreendido pela malevolência e a falta de consideração de algumas pessoas. Por ironia, graças justamente à malícia e traição humanas, me vi, repentinamente, libertado, respirando de novo, com o mundo todo ao meu dispor novamente. Senti até que podia correr e correr... Como quando tinha 20 e tantos anos. Agora, posso, como aquela personagem do romance "Cabeça de Papel" de Paulo Francis, dizer a frase de inspiração nietzscheana: "Finalmente o horizonte se abre mais uma vez, mesmo que não seja claro. Nossos navios podem, enfim, ir ao mar, enfrentando todos os perigos; qualquer risco é permitido a quem discerne; o mar, nosso mar está completamente exposto diante de nós. Talvez nunca tenha existido um mar tão vasto..."

... Continuando: Finalizando the work in progress.

Na seção final, em que era permitido inquirir o palestrante, perguntei a Sabino o que ele achava da crítica de Franklin de Oliveira (grande jornalista, crítico literário e ensaísta maranhense), que em sua análise sobre "O Encontro Marcado" considerava que a crise existencial dos jovens do romance era pouco convincente e a solução a que chega o protagonista, Eduardo Marciano - o misticismo - era escapista, a troca de uma verdadeira vivência dos valores por um ersatz de tragédia existencial. Nessa linha, considerava "O Encontro Marcado" como o "romance do Purgatório" e o seu autor "um romancista a caminho do fascismo". Naturalmente, Sabino, de certa forma - acredito que pelo respeito que tinha pelo grande ensaísta maranhense - tentou minimizar a colocação, aludindo ao fato de que a intelectualidade brasileira em geral e a de esquerda em particular, após os rigores do proto-fascismo do Estado Novo e os horrores da Segunda Guerra Mundial, mantinha-se sempre em guarda contra quaisquer manifestações (inclusive artísticas) porventura consideradas ambíguas que pudessem dar margem ao espraiamento de sentimentos nihilistas entre a juventude, oportunizando um retorno às pré-condições básicas para a instauração da barbárie fascista. Bem, sim e não! Sem dúvida, havia essa preocupação por parte da intelectualidade, mas o que Fernando Sabino não quis dizer, na minha opinião, é que esta preocupação em Franklin de Oliveira se devia à sua formação marxista que gostaria de ver a juventude mobilizada contra a ideologia fascista, o que um quadro de crise de identidade e desesperança existencial não favorece, bem como, que os críticos marxistas sempre esperam, à la Luckacs - que o romance sugira que a saída da "alienação" - essa a palavra-chave, subentendida, implícita para a desesperança existencial - passa pela reforma da sociedade, que deve superar o estado presente resultando em uma síntese superior, a instauração do socialismo... Com sua resposta que abordava apenas parte da questão, Sabino evitou a polêmica de aprofundar mais a questão do patrulhamento ideológico, bem como evitou discutir se "O Encontro Marcado" ao lidar com a imagem de uma juventude esvaída de substância dramática, falhou em descer ao portões do inferno da experiência existencial para extrair uma resposta, qualquer resposta, optando pelo que Franklin considerava uma saída de melancólica facilidade. O que vocês acham? Se ainda não leram "O Encontro Marcado", leiam e decidam vocês mesmos.




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